“Tuti, Tuti… onde está você, meu filho?”

“Quem é essa mulher
que canta sempre esse estribilho?
Só queria embalar meu filho
que mora na escuridão do mar.”

Os versos acima são parte da canção “Angélica”, feita por Chico Buarque em homenagem a Zuleika de Souza Netto – a conhecida estilista mineira Zuzu Angel -, que tornou-se mundialmente conhecida pelo talento na moda mas, principalmente, por ter sido uma das mais obstinadas lutadoras contra o regime da ditadura civil/militar brasileira, em virtude de não abrir mão do direito de saber o destino que a ditadura havia dado ao seu filho.

A vertente poética, quase dolorosa, da inspiração de um dos principais poetas da MPB, narra com precisão a dor de uma mãe que teve o filho de 25 anos assassinado pelo regime, o corpo foi ocultado e encontra-se desaparecido há 45 anos.

Stuart Angel Jones, filho do casamento de Zuzu Angel com Norman Angel Jones, estadunidense, foi militante do Movimento Revolucionário 8 de Outubro – MR8 -, preso em 14 de maio de 1971, por militares do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (CISA), no Rio de Janeiro. Torturado por quase um mês, recusou-se a dar as informações buscadas pelos militares, e no dia 14 de junho, do mesmo ano, teria sido amarrado rente ao escapamento de uma viatura das forças armadas. Já bastante ferido, foi obrigado a aspirar os gases da viatura em movimento pelo pátio da base aérea do Galeão, um dos palcos de tortura carioca. Em carta recebida por Zuzu, consta que teria agonizado durante a madrugada e não suportou a tortura. Outras versões dão conta de que um helicóptero teria atirado o corpo em alto mar – a inspiração dos versos de Chico Buarque. Aliás, a prática de se atirar corpos torturados ao mar foi comum às ditaduras latino-americanas. Mais recentemente, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) ouviu testemunho de militares que participaram da tragédia e que narraram que o corpo teria sido enterrado na cabeceira da pista do aeroporto da própria base.

Oficialmente na época do regime, Stuart foi dado como desaparecido, a mesma denominação para centenas de outros militantes políticos perseguidos, torturados, cujos corpos também jamais foram localizados, inclusive o deputado Rubens Paiva, que foi levado de sua casa diante de toda a sua família e desapareceu, em janeiro do mesmo 1971, também no Estado do Rio de Janeiro.

Desde o desaparecimento do filho até sua morte, em 14 de abril de 1976, Zuzu Angel tornou-se uma ativista contra o regime ditatorial. Buscou incansavelmente informações sobre a prisão e o destino do filho junto às autoridades brasileiras, sem conseguir obter informações oficiais, a não ser de que o filho estaria sendo procurado, porém não encontrado.

Sua luta, intensíssima, em busca de informações sobre os destinos do filho pode ser caracterizada em duas frentes: a primeira na denúncia da degeneração e degradação do próprio regime. Como o filho também tinha cidadania estadunidense, conseguiu que sua denúncia chegasse ao Congresso americano pelo discurso do senador Edward Kennedy. Além disso, por influência profissional, fez com que a mesma chegasse a importantes artistas daquele país, ganhando, assim, páginas da imprensa mundial. Destemida, certa vez, tomou do microfone de um avião que pousaria no Rio e, emocionada, anuncia aos passageiros que pousariam num país em que os governantes assassinavam a juventude. Em 1976, pouco antes de sua morte, conseguiu entregar um dossiê com denúncias da morte do filho e das mazelas do regime ao então secretario de Estado dos EUA, Henry Kissinger, que visitava o Brasil.

A segunda grande frente de atuação engajada de Zuzu Angel foi na própria moda. No período em que peregrinou atrás de notícias do filho, quando colocou a moda a serviço da denúncia. Estampas como Anjos (marca própria, vindo do nome Angel) feridos e amordaçados, tanques de guerra, pássaros engaiolados, crucifixos, balas de canhão. Essas foram metáforas utilizadas pela artista em roupas apresentadas em desfile realizado no início dos anos de 1970, no consulado brasileiro em Nova Iorque. O local foi escolhido por ser considerado território brasileiro. Havia um decreto presidencial que proibia brasileiros de fazer críticas em territórios estrangeiros, poderia ser presa se o desfile ocorresse em qualquer outro lugar. As modelos desfilaram com faixas simbolizando luto e com andar como fosse uma marcha fúnebre. A ditadura brasileira foi parar nas páginas da imprensa mundial a partir de um desfile de modas. Foi a síntese inovadora de uma mãe que utilizou seu talento na busca do corpo do filho desaparecido.

Zuzu Angel faleceu em 14 de Abril de 1976, no auge de sua luta em busca de notícias e do corpo do filho desaparecido. Considerada uma presença incomoda para o regime, desde sua morte foram levantadas suspeitas no sentido de que o acidente que vitimou a estilista, ocorrido na saída do Túnel Dois Irmãos (hoje Zuzu Angel), na Gávea (Rio de Janeiro), teria sido planejado pelos agentes de segurança do regime.

Durante as investigações recentes realizadas pela Comissão Nacional da Verdade, mais um fato reforçou a tese de emboscada que teria vitimado a mãe de Stuart. Trecho publicado pela Gazeta do Povo, no dia 25 de julho de 2014, narra o seguinte:

“Uma foto inédita obtida pela CNV (Comissão Nacional da Verdade) liga um coronel do Exército, Freddie Perdigão, à cena do acidente de carro que matou a estilista Zuzu Angel, em 1976, na avaliação dos seus integrantes. Para a comissão, a imagem é uma importante evidência de que a morte de Zuzu Angel foi planejada pela ditadura, apesar de a versão oficial sustentada é de que se tratou de um acidente.

A foto foi cedida à Comissão da Verdade pelo ex-delegado do Dops Cláudio Guerra, que depôs nesta semana, em Brasília, durante um mutirão da comissão. Segundo o coordenador da comissão, Pedro Dallari, Guerra não deu detalhes de como obteve a foto, mas a imagem segue o mesmo padrão das fotos feitas pela perícia e que constavam no inquérito sobre o caso”.

A trajetória histórica de mãe e filho aqui descritas ilustra um dos piores crimes contra os direitos humanos, que ocorrem comumente nos regimes de ditadura, que é exatamente a dor de familiares, amigos e filhos que não sabem o que de fato ocorreu com seus entes queridos. A melhor síntese que se pode buscar de uma dor praticamente inenarrável como esta, é a própria canção composta por Chico Buarque:

Quem é essa mulher
Que canta sempre esse lamento?
Só queria lembrar o tormento
Que fez o meu filho suspirar
Quem é essa mulher
Que canta sempre o mesmo arranjo?
Só queria agasalhar meu anjo
E deixar seu corpo descansar
Quem é essa mulher
Que canta como dobra um sino?

Hermes Silva Leão, presidente da APP-Sindicato – Artigo produzido para o portal Notícias Paraná

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