Numa colcha de retalhos que envolve obras de Dalton Trevisan, conhecido como “O Vampiro de Curitiba”, a secretária executiva de Comunicação da APP-Sindicato, professora Cláudia Gruber, reflete sobre o que o escritor estaria escrevendo agora para destacar as nuances do cotidiano curitibano.
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Leia a íntegra do artigo que aborda o escritor curitibano e as suas obras, inclusive, que trazem à tona uma de suas paixões (pouco conhecida) que era o amor pelos animais. A relação humana com seus animais de estimação remete fragmentos na sua escrita e aborda relações de amizade e de companheirismo.
Artigo: Tiau Marrecos, Firififis, Topinhos!
Neste dia 14 de junho, se estivesse vivo, seriam cem anos de histórias se desenhando, pois o Vampiro escreveu até os últimos dias de vida.
Mas, o que estaria escrevendo? Com certeza, nadica de política, economia, guerras tarifárias, mundo virtual, anistia para golpistas, bebês reborns. Temas como esses nunca lhe chamaram a atenção, nunca lhe despertaram interesse para serem vislumbrados na escrita ficcional. Sua matéria prima sempre foram os pequenos dramas, a vida privada escondida, envergonhada, debochada, as nuances do cotidiano curitibano.
Nas décadas de 1970 e 1980 a boêmia foi uma de suas temáticas constantes. Seriam hoje suas polaquinhas, as “garotas do job”? Afinal, ele era um cronista de sua época, nada lhe escapava pois, durante mais de setenta anos teve Curitiba como palco de suas obras. Percorrer a obra de Dalton Trevisan é também percorrer a história da cidade, seus costumes, suas mudanças, descobrir seus segredos mais ocultos.
Mas, não pense você que só o conheceu como “o Vampiro de Curitiba” que sua obra é apenas sinônimo de sexo, luxúria e devassidão como muitos insistem em taxar. Há um Dalton erótico, pornográfico? Claro que há! Mas, essa é só mais uma das muitas facetas desse escritor multifacetado, polivalente em suas temáticas. Talvez essa pecha tenha se tornado recorrente pois há muita curiosidade sobre o que é proibido, sobre o que é tabu.
Lembro do comentário de uma bibliotecária quando me viu com O vampiro de Curitiba nas mãos lá no começo dos anos 1980: “Esse livro é muito picante, não é recomendado para adolescentes”. Foi aí que eu quis lê-lo mais do que nunca. Mergulhei fundo e nunca mais larguei aquela escrita enxuta, concisa, seca, que beira à brutalidade mas, ao mesmo tempo, é inebriante e viciante. O famoso pico na veia.
Na década de 1990, houve épocas em que comprar jornal aos domingos era o momento mais esperado da semana, era algo obrigatório. Lá a gente lia inéditos, trechos de obras que depois se transformaram em livros, ilustrados sempre pelo fiel companheiro Poty Lazzarotto. 234 é um desses casos e lá um personagem especial também se fez presente: “Ele abre o portão. A paz familiar do cocô do Topinho na grama do jardim.” (TREVISAN, 1997, p.15, grifo nosso)
A violência é outra de suas outras marcas registradas, sobretudo a doméstica, onde, segundo ele, João e Maria crucificam-se na mesma cruz, já que essa odisseia doméstica é um moto-perpétuo. Houve também as adaptações, praticamente literais, de seus textos para o teatro mas, isso é outro papo. Longo, inclusive. Quem sabe pros 101.
Nessa imensa colcha de retalhos que é a obra de Trevisan, há uma temática que nos encanta mas, que tem sido pouco explorada por críticos e estudiosos, passando quase despercebida: sua paixão pelos animais. Os contos que os trazem como personagens são singelos, ternos, carinhosos e até mesmo divertidos. Trazem ao leitor uma relação de amizade e companheirismo que, só consegue entender aquele que a viveu ou vive em seu cotidiano.
Seu primeiro personagem nominado apareceu em 1968, nos Mistérios de Curitiba, é O gato chamado Marreco: “Ali se oferecia no degrau da porta – e vê-lo não era amá-lo? – inteirinho branco.” (1996, p.61)
Nestes textos, Dalton praticamente declara seu amor incondicional pelos companheiros de quatro patas das famosas mil e uma noites de insônia: “Noite de insônia, podia contar com ele, ao lado do tapete, alerta a cada gesto.” (1994, p.76)
Dentre os textos mais conhecidos onde os personagens são animais, está Tiau, Topinho, publicado pela primeira vez em 1994 em Dinorá: novos mistérios e reescrito apenas uma única vez para a Antologia Pessoal (2023).
Nesta breve história, o narrador nos conta o quanto foi traumática a morte do seu fiel companheiro de mais de 13 anos e relembra detalhes de uma rotina que já não existe mais:
No alto da escada, mal abro a porta, três bolinhas negras: dois olhos e um focinho. Mais o rabinho frenético, limpador louco de pára-brisa. Largo o pacote no primeiro degrau e me atiro para abraçá-lo. Senão, ai de você: bruto escândalo, gemido e choro. Esperar não pode, a festa de cada encontro. Em tantos anos nunca o vi sem lhe fazer um agrado. Ele nunca me viu que não ganisse de amor. (1994, p.75)
Também apresenta ao leitor seu desespero diante do inevitável mas, conclui de forma irônica como não demonstrar seus sentimentos diante da situação: “Mão firme, assino o papel da eutanásia. Pago a injeção e o resto. Puxa, sou um durão.” (1994, p.74, grifos nossos)
Mario Sergio Conti relata um encontro que teve com Dalton Trevisan em 15 de março de 2016, num boteco no centro velho de Curitiba. Ali, ele nos conta que Dalton:
Tem uma cachorrinha, uma bassê: “É uma alegria, uma excelente companhia. Quando volto para casa, late, late, late. Tenho de encaminhá-la, com broncas, para um quartinho. Ela vai na minha frente, resignada, de orelhas baixas; percebe que se excedeu. Ao contrário de outros exemplares de fêmeas, não guarda ressentimento”.
Além de Topinho, há outra personagem canina que tem sua história contada: Firififi. Ela apareceu pela primeira vez em 1972 (O Rei da Terra). Neste conto, vemos surgir uma linda e forte amizade entre a menina (não-nominada) e a cadelinha pequinesa:
Deitam-se as duas amiguinhas no tapete e quedam-se, olhos nos olhos, entretidas numa longa conversa que só elas entendem. A menina vem com as novidades: O nome dela não é Fifi, é Firififi ou Chiquinha do Maranhão. Quem lhe contou dona especula? Ora, mãezinha, foi ela mesma. Ou então: Sabe o que ela me disse? Estou bem feliz, maninha, de fita vermelha no pescoço! (1972, p.19)
Detalhes do cotidiano de ambas são compartilhados com o leitor: “Tem o seu relógio, conhece o passo da menina: atira-se aos trambolhões, primeira a dar-lhe dois beijinhos.” (1972, p.22).
Já alguns anos depois, aparece a continuação desta história. Em 20 contos menores (1979) novamente está Firififi e fechando o livro vem O fim da Fifi. Onze anos se passaram. A menina tornou-se moça, tem agora um namorado. Já não dá a mesma atenção que dava à companheira, há outros interesses. Mas, Fifi continua fiel e amorosa para com ela. Porém, para a família, ao envelhecer, a cadelinha foi perdendo sua graça, seus encantos e passou a deixar rastros pela casa (xixi e cocô), o que gerou implicâncias da mãe que a transferiu para o fundo de casa, deixou de lhe dar as comidinhas gostosas e quando chegava visita, trancavam-na na despensa escura. Tal tratamento vem de encontro ao que acontece, via de regras, com muitas pessoas idosas, que são relegadas ao esquecimento por seus familiares. “Fosse gente, seria avozinha de cabeça branca e bengala.” (1979, p. 105, grifos nossos).
Um ciclo começa se fechar nesse momento pois, a inevitável das gentes e das cadelinhas se aproxima de Fifi: “De volta da faculdade, a Fifi não pulou da almofada ao ouvir sua mão no trinco e os passos no corredor – o primeiro dia em onze anos.” (1979, p.107) Ao ver o estado da companheirinha, a moça fica nervosa. Até lhe dá alguns cuidados mas, ao ouvir o assobio do namorado no portão, sai correndo e a deixa sozinha. Fifi grava a última imagem da moça lhe afagando e entra latindo no céu.
Firififi e O fim da Fifi aparecem juntos novamente em 1991, em Vozes do Retrato. São contos que não podem ficar separados um do outro. Talvez para lembrar ao leitor que a vida desses nossos companheiros de quatro patas é breve, que essa amizade precisa ser vivida intensamente e quando se encerra deixará marcas profundas para quem souber viver tais momentos. Fifis e Topinhos são eternos. Não é mesmo, dona Mel?
REFERÊNCIAS
TREVISAN, Dalton.
O Rei da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.
20 contos menores. Rio de Janeiro: Record, 1979.
Dinorá: novos mistérios. Rio de Janeiro: Record, 1994.
Mistérios de Curitiba. 5ª ed. rev. Rio de Janeiro: Record, 1996
234.
Rio de Janeiro: Record, 1997.